sexta-feira, novembro 03, 2006

A Visita ou Quando fazemos coisas que poderíamos ter evitado ou A gente é que sabe quanto a gente calça


Eu ia escrever uma coisa bem bonita, uma coisa de filme de Peter Pan, uma coisa final com argumento e contra-argumento já embutido feito lingüiça, à perfeição. Eu ia me desculpar. Eu ia sinceramente me desculpar por um crime que não cometi e cometi. Ele veio aqui, visitar a si mesmo, matar sua saudade de ser o que quer que seja que ele possa parecer por essas paragens, ele veio visitar um texto, um reflexo, um oceano, uma multidão de personagens saídos da lenda própria, ele avisou que vinha e eu, habitante, nativa, tranquei-me, tratei de fazer o ritual da clausura do escritório, da proscrição de ar-condicionado, do rodapé da falta de tempo. Cheia de ciência e arte, arruinei a educação de fundo português que recebi e toda a Lusitânia antepassada mal passada quer ver minha caveira. Eu ia escrever para me auto-execrar, para dizer “que amargo isso aí que eu cometi - essa falta toda, essa triste não-história”, é. Ia. Eu aprendi tem pouco tempo, vergonha isso, aprendi tem bem pouco tempo que desculpa, desculpa... Desculpa, mas desculpa não existe. Existe vontade. Pode ser muita, pode ser pouca, pode ser nenhuma. O meu trabalho exerceu uma grande e imensa vontade sobre meus sentidos, por isso nem tive forças para discar o número. Nem. Alguém me arrume vontade. Dinheiro também serve.

(originalmente publicado em: 04/08/2005, no meu antigo blog, cujo endereço deve permanecer no mais absoluto sigilo)

quarta-feira, novembro 01, 2006

Navalha - Identidade revelada

Faz tempo que não apareço por aqui. Essa porra não muda. Uma mistura de aromas me traz recordações. Naquela época as coisas eram diferentes. Sinto o cheiro de mofo que permeia o lugar. As cadeiras de couro estão rasgadas e puídas. Puídas. Gosto dessa palavra. Me dá um ar de intelectual. Um título que eu mereço. Se não fosse inteligente nem culto não tinha chegado até aqui. Policiais trouxas. Essa camada de cera que faz o chão brilhar me traz a tona o brilho do passado. Tem um antigo amigo meu que me falava isso. Brilho do passado. Quem vive de passado é museu. Museu e essa joça de lugar. Espelhos manchados, fregueses cativos. Lugar que só atrai um mesmo tipo de gente. Os saudosistas. Lembro-me desse garçom. Parece até que saiu de uma história em quadrinhos. O tiozinho deve ter vindo da era paleozóica, assim como o porteiro do prédio em que vivia. Morei com minha mãe durante 20 anos, e quando saí o cabra ainda estava lá. É cedo ainda, o lugar está vazio. Hora de um drink no balcão para clarear as idéias.
- Chefe!
- Eu quero um Johnny duplo, com bastante gelo.
- Ok. Água acompanha?
- Não bebo água. Faz mal.
- Hehe, é verdade.
Garçons. Sempre rindo de nossas piadas idiotas quando ele queria mesmo era me mandar pra merda, largar aquele emprego imbecil e partir.
- Como anda o movimento da casa?
- Estou aqui há bastante tempo, mas é difícil dizer. Tem dias que a casa lota, tem dias que está mais vazio. Às vezes aparecem umas gatinhas, outras umas mulheres bem feias sabe? Muito irregular. Tá procurando uma gata pra hoje?
- Talvez...
Talvez eu não esteja afim de porra nenhuma hoje. Olho para o lado e percebo que algumas pessoas começam a entrar na balada. Calor humano. A coisa começa a ficar interessante. Lembro do meu terapeuta. Outro idiota, porém, se não fosse ele talvez eu não tivesse aberto meus olhos. Mal sabe que estudei tudo sobre Winnicott antes de consultá-lo. Eu quase implorei por ajuda. Tive vontade de acabar com minha vida, mas sabia que a maldita teoria da solidão essencial o impediria de me ajudar. De interferir e me apoiar em meus momentos de maior dificuldade. Eu estava sozinho, como sempre. E aí me veio o estalo. Se ele não deve interferir, mesmo que eu venha a ter tendências homicidas, porque alguém deve interferir, caso eu resolva matar alguém? No mesmo momento me lembrei dela. Aquela ingrata e vagabunda.
- Mais um duplo Senhor?
- Pode ser...
- Tá ficando tarde. Tem certeza que esse lugar vai pegar ainda hoje? Não tô vendo muita...
Uma gritaria tem início logo ao meu lado. Casal brigando. Ela bêbada, ofendendo o cara, e ele, com as bochechas vermelhas, ameaçando um tapa. Meu sangue transborda e sinto uma quentura na face. Quase perco o controle. Me retiro ao banheiro. Lavo o rosto, e me olho no espelho. Adoro essa parte. Acalma os nervos. Retorno ao meu copo, ao meu assento, e sorrio para o barman, que faz sinal de que tudo está ok novamente. Nesse momento, olho para trás e noto uma morena se aproximando. Linda. Linda não, delícia. Coxas grossas, cabelos ondulados e sardas no rosto. Ao vê-la caminhando com todo aquele estilo até doía, de tão bela, sexy que ela era. Safada. Não devia valer nada. Nem um pão com ovo. Foi então que ela sentou-se dois assentos à minha direita. Trocamos alguns olhares. Parecia amigável. Puta. Dando mole para o primeiro que a encarava.
- Tudo bem?
- Tudo e você?
- Qual seu nome?
- Renata.
- Prazer, Vladimir... Mas me chame de Vlad.

( Postado por Fernando Alonso - Ilustração de Silvio Sguizzardi)

terça-feira, outubro 31, 2006

Out

(postado por Roberta Nunes)

Tento, como um afogado, me agarrar nos destroços dos navios que me resgataram.
Mas, como sempre, trago um trago no olhar, e a malícia leva tudo para o fundo.
O bem.
Que bem?
Que bom?
Que gosto tem?
Salgado, claro.
Como o mar poluído, rasgado por canais de águas podres, sangrado por entulho e lixo e bichos mortos.
Tento, com desespero, afundar sozinha.
E vejo as rosas vermelhas espalhadas na água.
Homenagem ao homem.
Homenagem à virtude.
Perdida, entre fôlegos e suspiros.
A virgem carrega o cântaro e sorri, e caminha pra longe, sobre águas e crânios (engraçado, das órbitas vazias pinga cera de vela...), e sinto cheiro de vinho e promessas trocadas ao luar.
Tudo confuso no meu afogamento.
Respiro.
Meus pulmões vão enchendo, enchendo.
Mas, tudo não passa de uma banheira cheia.
De água.
De dor.
De sangue dos pulsos cortados.
De sangue da língua mordida.
De sangue da facada nas costas.
Do aborto.
Um chifre de unicórnio pode se tornar uma arma muito eficiente.
Metros e metros de seda se tornam amarras.
As ondas tentam, claro, me arrastar pra longe.
Pra longe da sua cama segura.
Da sua escrita pungente.
“Me dizem que sou muito intenso...”
Wow.
E o meu silêncio diz muito mais do que você pensa.
Não quero falar de amor com você.
Quero falar de solidão.
E do sangue coagulado.
E da porra que grudou no chão e no meu cabelo.
Amor não.
Amor, não.
O seu amor dói.
Dói por ser o que eu preciso pra viver.
O bote salva-vidas...
Rasgado.
A jangadinha improvisada, vigas dos navios, mastros e retalhos de velas, cordas roídas pelos ratos.
Tumores.
Como o vampiro velho e desdentado, arranco o (meu) coração, e chupo até não sobrar nada, nem uma gota de sangue.
Passo os dedos manchados nos olhos, e a visão turva e vermelha, me leva de volta para o mar.
Para o afogamento iminente.
Nada de adiamentos.


“Please come over me
And do it again
You have to be sinful
My only friend, you are
Take away all our
Differance
For everything's empture
We should pretend
All that we are” -
Again It's Over - Lacrimas Profundere

“Venha por favor, sobre mim.
E faça outra vez
Você tem que ser pecaminosa
Minha única amiga, você é
Leve todas nossas
Diferenças
Por todo reino
Nós devemos fingir
Tudo que nós somos”