sexta-feira, novembro 24, 2006

INCÊNDIO NO AQUÁRIO: uma peça sem atores


(Apresento aqui uma idéia que me veio num momento em que realmente NADA nesse mundo poderia me dar imaginação. Estou num grande desespero em terminar várias coisas começadas, coisas que me fazem acordar para viver e continuar com esse pensamento de continuar vivendo para continuar tendo coisas para terminar, mas assim, explicado, não faz o menor sentido. Então, não havia como escrever nada hoje. Semana passada eu até esqueci desse meu compromisso. E hoje eu ia fingir que me esqueci também. Aí lembrei de umas coisas que eu via e ouvia num tempo em que eu só precisava ver e ouvir, sem filosofia, lá pela década de 80. Então eu vou escrever. É isso.)


Peça AUTÔNOMA n° 01 (que, na verdade, qualquer curadoria trataria com instalação pós-pop-moderna, com pitadas generosas de mau gosto)


Dramatis Personae:

- Uma geladeira com vários lembretes grudados.
- Uma mesinha com mais papéis e uma caneta, em caso de alguém querer deixar um recado também.


Silvia:

Já tivemos um aquário bem grande em casa. Daqueles com cenário. Eu nunca vi uma coisa mais estranha, porque sinceramente, sempre achei que os peixes não estavam absolutamente nem aí para o escafandrista com a arca do tesouro abrindo e fechando. Eu queria ser pequeno para caber no aquário e nadar ao redor da arca e me surpreender com o brilho misterioso que pudesse haver ali. Eu estava passando aqui e vim te perguntar se você viu o outro bilhete que deixei aqui outro dia. Pois é. Finalmente eu comprei um aquário só meu, sem peixes. Com um escafandrista bem grande e uma arca. O nome dele é Mauro.

Beijos,

L.

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Carlos:

Puta que pariu você! Só pode ter sido você quem comeu minhas ameixas, Carlos! Odeio você! E não me escreva mais poemas se desculpando, se é que aquilo ali era um poema mesmo. E, do jeito que você é, de repente nem foi você quem comeu minhas ameixas, você inventou só para eu ficar muito puta! Vai pra puta que pariu, seu escroto! Vê se deixa de merda e arruma um emprego!

S.

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Sheila:

Fui em quem comeu as ameixas, estavam tão geladinhas!
Beijos,

W.

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William:

Não esqueça de comprar pão. Ontem eu estava lembrando de quando a gente passava uma fome desgraçada na Argentina. A gente quase liofilizou! Pois é, eu tava lembrando, eu sei que é triste, mas, porra, é tão bom ter grana pro pão, falar português e odiar em português! Não esquece do pão, please! Ah, o Luís arrumou um namorado mergulhador, eu vi! Você nem vai acreditar como o cara é uma coisa de doido! See ya later!

Te amo grandão!

S.

___

Povo:

Seguinte, o aluguel venceu e a mulher já ta me olhando feio na escada. Acho que está na hora de procurarmos outro buraco pra viver. Que acham?
Reunião depois dos ensaios?

W.

__

Luís,

Traz o teu namorado gostoso aqui pra gente dar uma traçada nele? Estamos com fome! Ah, é foda. Ter que sair, agora que tá ficando bom? Sacanagem.

Beijo!

S.

__

Silvia,

Pra que você foi me lembrar dele? O aquário pegou fogo, infelizmente. O escafandrista fritou.

Triste, muito triste,

L.

__

Silvia:

Que fora você deu, hein? Tu é FODA!
Não viu a notícia no jornal, não? O mergulhador do Luís foi assassinado por um grupo de extermínio de gays. Tá bizarro, vamos ter que cair fora desse buraco aqui e arrumar outro. Que tal a gente voltar pra Argentina e dançar tango até morrer de fome? Acho que se a gente armar uma coreografia bem legal a gente consegue!

S.

__


Povo:

O enterro do Mauro é amanhã. To fudidamente triste. Quero abraço. Quando nos encontramos? Saudades de vocês. Não sei se consigo esperar o dia do ensaio. Essa coisa de termos horários de trabalho tão diferentes me deixa doente e sozinho. Olha, eu não sei não. To muito mal. Qualquer coisa que me acontecer, tem uma caixinha trancada no meu armário e quem tem a chave é a mãe do Mauro.

Beijo e desculpa aí a chantagem, to confuso.
O último que sair apague a luz. E feche a geladeira.

L.

7 Comments:

At 5:30 PM, Anonymous Anônimo said...

uma vez comecei uma série - que não terminei - chamada Poemas de Geladeira, por causa de umas letrinhas de ímã que eu tinha, aí cada vez que eu ia pegar um copo d'água, ficava lá hooooras inventando textos meio dadaístas.

sim, concordo com a curadoria: uma instalação

 
At 5:36 PM, Blogger luisggcosta@hotmail.com said...

oi Carulina!
Peça sem atores, mas qdo se tem uma boa autora nem precisa disso ! nao é?

Bravo! bravo!
beijao

 
At 8:26 AM, Anonymous Anônimo said...

Todos:

Putz! Fechar a geladeira... Quem é que escrevia com a geladeira aberta, hein??? Não tem mais energia nessa casa...

A vida como ela foi.

P.

 
At 4:37 PM, Anonymous Anônimo said...

Oi Carol! Patético! Porém, tem conteúdo! E borboletas esvoaçantes no "décor"..
Refletindo..em que poderá servir uma geladeira aberta?
Desejos de calor congelados pelo tempo? Pedrinhas geladas de amor querendo saltitar pela cozinha?
Experta nutriz, a cozinha! Lugar passamos a maior parte de nossas vidas! Por favor deixa a geladeira aberta!
O que estragar a gente joga fora!
Depois, o supermercado ...
Quanta novidade! Quanto colorido!
Sorrisos!
A geladeira vai agradecer!
Beijos
d'Eu: linn
nota: minha filha chama Carol ....rs rs

 
At 6:41 PM, Anonymous Anônimo said...

oi Carol!

nada melhor do q o poder das palavras para quebrar o gelo e virar a mesa nessa tragicomicidade da farsa cotidiana. bela idéia, peça visionária.

William Carlos Williams baixou aqui e agradeceu pelo lembrete!

bj

 
At 2:00 PM, Anonymous Anônimo said...

Carolzita de Jesus! Duca! Adorei o clima nonsense com senso, o humor, a velocidade estonteante, a ironia, acidez, tudo, tudo, baby! Parabéns!

 
At 5:13 AM, Blogger Roberta Nunes said...

Carol, carol.
desgraçadamente alegre.
triste.
desencontros.
amor.
tudo lá.
texto phoda.
beijão
Ro

 

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