quarta-feira, novembro 01, 2006

Navalha - Identidade revelada

Faz tempo que não apareço por aqui. Essa porra não muda. Uma mistura de aromas me traz recordações. Naquela época as coisas eram diferentes. Sinto o cheiro de mofo que permeia o lugar. As cadeiras de couro estão rasgadas e puídas. Puídas. Gosto dessa palavra. Me dá um ar de intelectual. Um título que eu mereço. Se não fosse inteligente nem culto não tinha chegado até aqui. Policiais trouxas. Essa camada de cera que faz o chão brilhar me traz a tona o brilho do passado. Tem um antigo amigo meu que me falava isso. Brilho do passado. Quem vive de passado é museu. Museu e essa joça de lugar. Espelhos manchados, fregueses cativos. Lugar que só atrai um mesmo tipo de gente. Os saudosistas. Lembro-me desse garçom. Parece até que saiu de uma história em quadrinhos. O tiozinho deve ter vindo da era paleozóica, assim como o porteiro do prédio em que vivia. Morei com minha mãe durante 20 anos, e quando saí o cabra ainda estava lá. É cedo ainda, o lugar está vazio. Hora de um drink no balcão para clarear as idéias.
- Chefe!
- Eu quero um Johnny duplo, com bastante gelo.
- Ok. Água acompanha?
- Não bebo água. Faz mal.
- Hehe, é verdade.
Garçons. Sempre rindo de nossas piadas idiotas quando ele queria mesmo era me mandar pra merda, largar aquele emprego imbecil e partir.
- Como anda o movimento da casa?
- Estou aqui há bastante tempo, mas é difícil dizer. Tem dias que a casa lota, tem dias que está mais vazio. Às vezes aparecem umas gatinhas, outras umas mulheres bem feias sabe? Muito irregular. Tá procurando uma gata pra hoje?
- Talvez...
Talvez eu não esteja afim de porra nenhuma hoje. Olho para o lado e percebo que algumas pessoas começam a entrar na balada. Calor humano. A coisa começa a ficar interessante. Lembro do meu terapeuta. Outro idiota, porém, se não fosse ele talvez eu não tivesse aberto meus olhos. Mal sabe que estudei tudo sobre Winnicott antes de consultá-lo. Eu quase implorei por ajuda. Tive vontade de acabar com minha vida, mas sabia que a maldita teoria da solidão essencial o impediria de me ajudar. De interferir e me apoiar em meus momentos de maior dificuldade. Eu estava sozinho, como sempre. E aí me veio o estalo. Se ele não deve interferir, mesmo que eu venha a ter tendências homicidas, porque alguém deve interferir, caso eu resolva matar alguém? No mesmo momento me lembrei dela. Aquela ingrata e vagabunda.
- Mais um duplo Senhor?
- Pode ser...
- Tá ficando tarde. Tem certeza que esse lugar vai pegar ainda hoje? Não tô vendo muita...
Uma gritaria tem início logo ao meu lado. Casal brigando. Ela bêbada, ofendendo o cara, e ele, com as bochechas vermelhas, ameaçando um tapa. Meu sangue transborda e sinto uma quentura na face. Quase perco o controle. Me retiro ao banheiro. Lavo o rosto, e me olho no espelho. Adoro essa parte. Acalma os nervos. Retorno ao meu copo, ao meu assento, e sorrio para o barman, que faz sinal de que tudo está ok novamente. Nesse momento, olho para trás e noto uma morena se aproximando. Linda. Linda não, delícia. Coxas grossas, cabelos ondulados e sardas no rosto. Ao vê-la caminhando com todo aquele estilo até doía, de tão bela, sexy que ela era. Safada. Não devia valer nada. Nem um pão com ovo. Foi então que ela sentou-se dois assentos à minha direita. Trocamos alguns olhares. Parecia amigável. Puta. Dando mole para o primeiro que a encarava.
- Tudo bem?
- Tudo e você?
- Qual seu nome?
- Renata.
- Prazer, Vladimir... Mas me chame de Vlad.

( Postado por Fernando Alonso - Ilustração de Silvio Sguizzardi)

7 Comments:

At 6:41 AM, Anonymous Anônimo said...

ADOREI texto e ilustração!
Beijos

 
At 12:20 PM, Anonymous Anônimo said...

O Vlad me parece interessante, mas será que a Renata consegui desenvolver o papo com ele? Ou ele teve que tomar mais uma dose pra isso?

Hum... pensando bem, o Vlad não queria um bom papo! Se tivesse afim disso seus camaradas estariam com ele.

O que ele queria era uma noite de sexo e normalmente sexo não se faz com os camaradas ! ..rs...

 
At 12:27 PM, Blogger Roberta Nunes said...

Fernando,
está diferente.
um texto seu, mas diferente.
melhor.
bem melhor.
e...continua?
beijos
Ro

 
At 7:01 PM, Anonymous Anônimo said...

Texto bem escrito e narrado. Gosto deste estilo.

 
At 5:09 AM, Anonymous Anônimo said...

Gostei demais da crônica...

mas.. Winnicott??? hahahahahaha... ng merece :P

Parabéns!
bjo

 
At 6:11 AM, Blogger Feffers said...

Obrigado pessoal!

E...continua sim Rô!
:))

bjs

 
At 2:42 PM, Anonymous Anônimo said...

Boooa, Fernandão! Quero só ver essa continuação, hehehhe!!
Grande abraço!

 

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