Salomé Cheia de Misericórdia

Dramatis Personae:
- SALOMÉ, enteada de Herodes, apaixonada por Iokanan, mas louca para cortar-lha a cabeça e livrar-se do padrasto.
- IOKANAN, o profeta, mais conhecido como João Batista, prisioneiro de Herodes, amado por Salomé.
- SOLDADOS, todos fissurados em Iokanan.
- HERODES ANTIPAS, Tetrarca da Judéia, que só queria saber de comer a Salomé.
- INSETOS, os mais variados.
Cena 1
Um poço cercado por oliveiras e a entrada do palácio de Herodes. Salomé entra correndo, com apenas dois véus restantes de sua dança, os seios nus, o rosto e as mãos vermelhos de sangue, e debruça-se sobre o poço. O sol se põe.
SALOMÉ: Iokanan, desperta do teu orgulho impossível, hoje eu tiro você desse poço.
IOKANAN: Não precisa, vá embora, prefiro os leões e o sal.
SALOMÉ: Egoísta. Você é igual a Herodes. Só quer saber do seu prazer sádico. Nunca pergunta como foi meu dia. Escuto seus problemas, já sei tudo sobre como é ser prisioneiro, envio-te as melhores ameixas e o melhor vinho e o melhor pão com o melhor azeite e você! E você me dá em troca seu orgulho diário! Você nunca pergunta sobre minha vida! Você nem sabe nada de mim, Iokanan! Eu que me devoto tanto!
IOKANAN: Não posso fazer nada por você, que só dá atenção querendo atenção em retorno. Esse não é o amor de Deus. Se eu estivesse livre e passasse na tua frente, ia ser tudo muito diferente, nem ia querer me ouvir, nem olhava pra minha cara! Mudando de assunto, o soldado me contou que você pediu minha cabeça em troca de livrar-se dos anseios de Herodes. Quando será meu martírio? Estou ansioso!
SALOMÉ: Ah! Então quer ser mártir? Sem ralar? Sem ralar nem um pouco? Realmente mandarei exterminar esses soldados linguarudos! Vai ter que ralar pra ser mártir, meu bem! Escalavrar essas mãozinhas no meu corpinho! Depois a gente conversa sobre seu martírio e ir pro céu e tudo mais.
IOKANAN: Sou mais os leões.
SALOMÉ: Você é muito gay, não dá pra conversar com você. Que desperdício de homem, meus deuses!
Sangue desliza do pescoço de Salomé e cai sobre os olhos secos de Iokanan.
IOKANAN: Você derrama sangue da tua língua viciada, mulher! Sangue imundo, puro fel!
SALOMÉ: Deixe de drama. Bem, eu vim aqui toda feliz te contar o que eu fiz por nós dois, mas você fica aí me ignorando... Então, nada pra ninguém. Fui.
Cena 2
O cenário escurece e surge uma grande lua, que ilumina o poço, o portal do palácio e as árvores. Há insetos sobre o poço e ao redor. Música indica o início da cena. Salomé, ainda com sangue sobre o corpo, entra dançando com uma taça nas mãos, completamente nua. Ela está acompanhada por soldados com cordas.
SALOMÉ: Herodes está morto e sou livre. Bebo seu sangue esguichado do grande rasgo que fiz em sua garganta, com meus dentes! Os olhos eu como mais tarde, fritos.
PRIMEIRO SOLDADO: Salomé é rainha!
SEGUNDO SOLDADO: (falando baixinho) Cala a boca, infeliz, não vê que ela está louca e é uma feiticeira! Precisamos tirar Iokanan desse vexame e livrá-lo dessa mocréia!
PRIMEIRO SOLDADO: Você tem é inveja dela, que é linda e poderosa! Pensa que eu não sei que você e o Ioko estão de farra nesse poço há um tempão?
SEGUNDO SOLDADO: Pega leve, não é bem por aí...nós estávamos projetando uma grande fuga! Agora que ela acha que tem o poder por ter matado Herodes, claro que vai querer soltar o profeta! Aí a gente foge com ele!
PRIMEIRO SOLDADO: Não sei não, ela é muito estranha... Outro dia mesmo ela me inventou uma brincadeira com o chicote... Não gostei não! E se ela inventar de açoitar o pobre? Ele morre, de tão fraco!
SALOMÉ: Ouço vozes! Vocês dois, tragam as cordas! Iokanan, você não me assusta com sua praga de insetos nível básico! Hoje você dança comigo. E ainda trouxe um brinquedinho! Tirem logo ele daí!
Os soldados ajudam Iokanan a sair, escalando as cordas. Os insetos desaparecem. Salomé faz uma reverência demorada a Iokanan, ficando prostrada sobre o corpo nu. Iokanan parece perplexo diante da mulher de cabelos negros desgrenhados, o corpo branco e nu coberto por sangue. Ela se levanta.
SALOMÉ: Soldado, me dá o chicote!
SOLDADO: Sim, minha rainha.
SALOMÈ: Agora podem ir.
Ela espera até que os soldados saiam.
SALOMÈ: Açoita-me, sou o demônio! Vamos, pega o chicote e me açoita! Anda logo!
Estranhamente, Iokanan aceita o serviço, mas sem alegria. Salomé prostra-se novamente para receber os açoites, que são muitos e intensos. Ela grita. Ele grita. Cansado, o corpo de Iokanan resvala sobre o de Salomé. Os dois rolam um sobre o outro, dividindo o sangue. Salomé adormece, satisfeita pela surra.
IOKANAN: Sigo para o deserto, para encontrar o Filho do Homem!
SOLDADOS: Vamos com você, belezura.
Saem Iokanan e os Soldados, de mãos dadas, trotando.
Cena FINAL
Salomé acorda e percebe que está sozinha. Dança ao redor do poço e cai no chão, cansada.
SALOMÉ: Então, a vida é essa! Amar e receber traição em retorno, amar e ser trocada por uma cambada de cães, amar e ser trocada pelo deserto! Iokanan! Traidor Iokanan, egoísta, orgulhoso, covarde! Esconde-se atrás de uma fé estranha para poder andar com os meninos da tua escolha! Eu só queria uma atenção, mínima, você poderia se divertir muito, depois, com quem quisesse! Não é assim, hoje em dia? Mas não... Tinha que ser só do seu jeito. Burro! Vou procurar um analista e casar com ele! Pelo menos alguém vai me ouvir!
Salomé sai, cuspindo no poço e no chão.
Cai o pano.