MALENA

Já velho, ele se lembra de Malena.
- Onde ela está ?
- Em algum lugar ao norte do equador.
Ele conhecera a verdadeira, na foto ele é o senhor de chapéu em feltro. Foi cortado.
Naquela época, ambos queriam o máximo. Ele continua assim. Ela sabia dar amor, muito amor, deve continuar assim. Estranho ela o chamar para a viagem exatamente agora, na véspera da morte.
Mas ele faz a mala assim mesmo. Chamou o táxi:
- Pra onde, doutor ?
- Aeroporto.
- Bem rápido ?
- Isso.
Taxistas lhe serviram a vida toda como informantes. Malena fumava dentro dos carros, ele pagava mais por esse luxo. Malena tinha uma tatuagem de sol e lua nas costas. Ele não se cansava de passar a língua de um para outro astro.
A memória era garantida por um chip de inteligência artificial.
A memória dizia que ele conhecera a Malena verdadeira.
- Esse é seu nome mesmo ?
- Sim. Por quê não seria ?
- É tão bonito. Você é tão pequena.
- Posso usar o banheiro ?
- Claro.
- Posso fumar lá dentro ?
- Eu penso que sim.
- No fim das contas, você não poderá ser indeciso dessa forma.
Choques no chip.
Abre a janela, acende um charuto. O mar de cogumelos está em alta. Gatas negras se escondem debaixo das sombras e molham as patinhas nas ondas, brincam e saltam.
O porto flui sujeira humana: marinheiros carragam lápides nas costas. Não consegue ver se alguma tem seu nome. Traga a fumaça do charuto, a brasa recordando: é impossível não pensar em Malena. O nome dela, o cheiro, o sabor, tudo está grudado bem no corpo caloso, que comunica um hemisfério com outro do cérebro. Sentimento e razão. Por onde tentasse escapar, lá estaria ela, de braços abertos, na Chapada. No Distrito Federal. Em Barão Geraldo. Na Índia, principalmente Índia e Tânger.
No início ela não gostava de dar a boca a beijar.
Ele a forçou.
Ela cedeu e muito sexo veio depois disso. Com malabarismos que ele se segurava para não cair da cama. Ela ria do desjeito. Abusada. Angelical.
De noite ela tinha aulas, se decidindo entre teatro e dança.
- Você pode fazer as duas coisas.
- Eu já faço mais de duas. Preciso me focar.
Até onde sabia, foram 7 maridos ricos. Mortos de maneira assassinada. Jardineiros não paravam nas mansões. Na balaustrada, enrolada em um lençol. Na janela, fumando sempre, ele escrevendo o romance, em 15 dias, sobre ela.
- Como vai se chamar sua personagem ?
- Malena.
- Posso colocar assim, sem mais nem menos, você é um pouco mais que uma adolescente e...
- Deve.
"Então Malena saltou janela adentro e veio massagear meu couro cabeludo(...)"
A lixeira lá embaixo, ele se lembra, pegou em chamas. O cheiro ficou insuportável. Ele teve que fechar a janela. Malena não se importou, nunca ficava de marra.
Ofereceu o toco do charuto para o motorista, que aceitou de pronto.
Dos navios, mulheres nuas mergulhavam para alto mar. Loucas de uísque e vinho. Nas bocas de tubarões destentados, carinhosos. Tubarões cegos por algas enraizadas nas retinas.
Ele também já era cego. Mas o chip se conectava por fios ao nervo óptico. E às memórias. E ao desejo de futuro.
No aeroporto, dispensou os ajudantes, em seus trajes amarelos desfocados. Ela lhe mandara a passagem. Foi até uma cabine eletrônica individual. Abaixou a calça e ligou o fio na próstata hipertrofiada. Descarregou todos arquivos que possuia. E depois deletou tudo. Levaria consigo sua vida e a de Malena. A intimidade não cabia a mais ninguém. A senha, tatuada em suas pelancas, apenas para quem soubesse ler, e não tivesse nojo do mal cheiro.
O elevador de cristal o levou para a interzona de embarque internacional.
- Senhor, o indicador de metais está indicando...
- É meu transplante cardíaco.
- Perdão. Boa sorte. Boa viagem. Boa saúde.
O transplante era de porco.
A pistola era de alumínio compensado.
Nos jornais e revistas, da Aviação Cometa, apenas revistas e jornais antigos. "O mundo acabou ontem". Novidade. "Apenas baratas estão vivas". Sempre elas. "Etilarias saqueadas".
- Me veja um uísque, mocinha. Sem gelo.
Tomou de um gole, com a cabeça para trás, para que, ritual, a bebida chegasse mais rapidamente ao chip.
- Senhor, o cinto de segurança não está...
Tirou a pistola e meteu a bala entre os seios da garota.
Guardou novamente no coldre e fechou os olhos.
Nunca conseguia sonhar com Malena.
- Garota, você está morta ? Pode fazer o favor. Exiba aquele filme de Mônica Bertolucci.
- Preciso me recuperar um pouco. Fraturei a casca externa.
- A próxima bala será dentro da sua boca fétida.
- Já estou indo, já estou me levantando, o senhor é cruel e adorável.
- Peça para o motorista acelerar.
Os ratos de porão mordiam o carpete vermelho sob seus pés descalços.
Era gostoso, sim, decidiu, gostoso.
Abriu os olhos dentro de um tubo de ensaio hospitalar.
- Ele ligou.
- Senhor ? Está on line ?
- Sim. Onde está Malena ?
- Aguardando no Comunicator.
- Me coloque dentro de alguma máquina sua.
- Precisamos da senha. Os ratos comeram.
- Apenas me coloque, otário.
" Velho rio, como um velho, cansado, mal-tratado rio..."
( Wander Wildner)
Anjinhos gorduchos e míopes fizeram o serviço com agilidade e música barroca.
- Malena ?
- Oi meu amor.
- Onde você está ?
- Não muito longe.
- Em uma cidade ?
- Tudo é cidade.
- Você pode receber uns arquivos aí ?
- Posso.
- Publique tudo. Venda caro. E doe a grana para as famílias de seus ex-maridos.
- Case comigo antes de morrer.
- Não caio nessa, Malena.
- Até que enfim aprendeu a ser esperto.
- Sou cruel e adorável.
- Eu sempre te dizia isso. Não mudo uma vírgula.
- Não tem vírgula.
- Esperto mesmo. Vamos, mande os arquivos.
- ...
- Lerdo.
- Download concluído.
- Obrigada. Vou passar bem. A histórtia é minha. Realmente vou ficar bem, querido.
- Eu sei.
- Babaca.
- Será, Malena ?
E apagou todas as luzes do mundo. Apagou a si mesmo. Apagou todas as memórias. Todas histórias.
Agora sim, Malena.
Agora as notícias são atuais.
Baratas universais morrem de delirium tremens.