Balada do Morro Vermelho

Ele era tempestade e não tinha deus porque ele era o deus, o meu deus, o deus de si próprio e o deus perpétuo do meu sono perdido. Ele era tempestade e eu morria de medo, um medo insuperável, de tempestade, de água devastando tudo, comendo, comendo, comendo, desenraizando, despindo, entortando, eu descia as escadas para ver e acreditar que tudo ainda podia viver além da água maior que a vida, então punha balde entre as flores para que o horror fosse contido, mas nunca falei mesmo o que achava. Eu achava que ele era tempestade e era deus. E suas mãos estavam por toda parte, porque eram as mãos de um deus preciso.
- Menina, pare de olhar minha cara feia. Volte pra casa. Vou te jogar uma pedra. Vou te pendurar na cruz da igreja!
Eu nunca voltava de verdade e ia guardando a voz dele bem dentro, bem aqui, bem ali, esfregando, engolindo a voz, o que restou da voz, o que eu achava ser a voz, as impressões sujas da voz, a última sílaba,
ja,
minha e só pra mim,
jaaaaaaaaaaaaaa
e repetia jaaaaaaaaaaaaa
e fazia música com jaaaaaaaa,
e criava mais uma sílaba para dar uma lambida no que me restou dele,
dentro de mim. Um som. Uma imagem acústica.
Subia o morro vermelho e ficava de lá, observando ele por baixo do caminhão, mexendo ali, no infinito desconhecido, mexendo na minha paz, os pés sujos de terra, as mãos sujas de suas escolhas, eu suja de pensamentos, a escola me esperando, mais um pouco, mais um pouco e ele vai olhar para cá, e olá, moço que traz vento e chuva. Olá. E descia novamente o morro. E meu corpo tremia o meu futuro porque eu sabia que ele era meu único habitante, nem eu existia mais em mim, mas se piso na pedra errada, se olho agora para o canto que não era bem o canto preparado para o habitante, ah, eu quero tanto que meus olhos me obedeçam! Eleito meu deus, minha tempestade, eu engolia todo o ar que podia, para tentar não pensar, mais ar, mais ar, mais ar e se pudesse o engolia, a começar pelos pés, pela sujeira dali dos pés, e me colocava diante do caminhão, suspendendo minha verdade diante dele, mostrando meu mundo, a melhor visão do mundo sobre o rosto entristecido, meus inícios,
- Menina, vou descobrir quem é sua mãe e vou contar!
Corri com raiva. Meu vestido pequeno para meu tamanho, a calcinha abandonada, que é que eu podia tentar agora? Corri para o balde cheio da minha veneração. Água cinza cantava do céu sobre meu cabelo cinza que não dizia nada, de tão recatado no cinza, e corri com gaiola, balde pesado e flauta e tudo, olá pássaro, vamos celebrar o deus, a tempestade. Assim mesmo, mantendo o tom do meu roteiro. Antes de começar eu pensava fundo nele e na dificuldade que era em preservar seus pedaços quietos e inteiros e vinha um desespero de que ele podia estar se perdendo, de ser inexato. A flauta eu enfiava na gaiola, para o pássaro, e era uma forma de mostrar ao pássaro que eu venerava meu futuro, o que não pode ser. Eu acreditava num deus de chuva e carne. E em amar um deus. Da tempestade. E era muito só, esse movimento. E frio. E ácido. E complicado de se imaginar. Como um pássaro tocando flauta. Então, bebia do balde, lentamente, o resgate do meu deus, suas pegadas.
(A terra tão seca. Meses de ausência. Eu preparava meus funerais. Ele era o deus, a tempestade, o que eu não entendia e o que eu queria.)
Do morro vermelho eu vi o caminhão chegando. Nesse dia ele me sorriu lá do outro lado da divindade. Os pingos começaram a bater forte em minhas costas. E fiquei nua. E pedi perdão por duvidar. E subi mais alto e mais longe. E ele me sorriu, mais uma vez. E a água era tão forte. Como mãos buscando. Como lábios buscando. Como sede sendo vertida no oceano.